A véspera de uma competição olímpica costuma ser marcada por
muita concentração, restrições alimentares, descanso e tentativas de conter o
nervosismo. Mas, em 1932, o catarinense Adalberto Cardoso vivenciou o contrário
disso. Representante do Brasil na corrida de 10 quilômetros nos Jogos de Los
Angeles, nos Estados Unidos, o atleta chegou ao local de prova minutos antes da
largada, esbaforido.
Adalberto vinha de outra maratona: havia desembarcado com
parte da tripulação em São Francisco, porque a delegação não tinha dinheiro
para deixá-lo na cidade certa. Lá, o grupo comprou um carro usado, que quebrou,
e alugou um outro para chegar ao estádio, em uma epopeia de mais de 18 horas
sem dormir, nem se alimentar – eles tinham comido apenas frutas no caminho.
Reportagens da época destacavam que o atleta brasileiro
perdeu as forças três vezes e caiu durante a prova olímpica, mas conseguiu
completar o percurso e chegar em último lugar, duas voltas depois dos
adversários, mas sob aplausos calorosos do público. O locutor havia contado sua
história nos alto-falantes e criado o apelido que marcou sua trajetória:
Adalberto Cardoso, o Homem de Ferro.
Se os aplausos e o reconhecimento da imprensa foram
calorosos após a corrida, a vida do marinheiro Adalberto logo voltou à normalidade
no Brasil, e sua história, na visão da família, caiu no esquecimento. "Meu
pai é um herói nacional, que deu seu nome para o Brasil, deu seu nome para
Santa Catarina, e, em Florianópolis, não tem um beco com o nome dele",
cobra Ademir Cardoso, de 74 anos, único dos quatro filhos de Adalberto ainda
vivo.
Atleta serviu na 2ª Guerra
Morador da capital catarinense, Ademir guarda na sala de
casa um quadro com as medalhas do pai, além de notícias da época, fotos e uma
página escrita à mão, em que o atleta fala sobre suas vitórias esportivas, em
competições internacionais na Espanha e Holanda, e sua participação na 2ª
Guerra Mundial, na qual serviu em um navio que rastreava submarinos.
O Homem de Ferro sobreviveu à guerra, na década de 40, e seu
filho ainda hoje conta uma história de que o pai foi atropelado por um caminhão
no centro do Rio de Janeiro e quebrou cinco costelas, mas se levantou,
preocupado com os documentos que estavam no paletó. "Ele era muito forte
por ser corredor. Morreu em 10 de janeiro de 1972", lembra o filho com
precisão. "Ele estava jogando um dominozinho, não se sentiu bem e teve um
infarto."
Na década de 40, Adalberto serviu em dois navios de guerra
durante a 2ª Guerra Mundial. Segundo a Marinha, o primeiro foi o
caça-submarinos Gurupi, em 1943, e o outro, o Goiana, do mesmo tipo, em que
ficou do final de 1943 até 1946, com o fim da guerra.
Policial militar da reserva, Ademir lembra que nunca foi
estimulado pelo pai a ser atleta, porque, apesar das conquistas, Adalberto não
via futuro na prática esportiva. "Naquela época, esporte não dava nada. Só
ganhava uma medalhinha, e acabou. Nos dias de hoje, ele estaria
milionário", diz Ademir, que pretende assistir aos Jogos Olímpicos, mas só
pela televisão. "Gosto da tranquilidade da minha casa."
Personagem hollywoodiano
Autor do livro 1932, Uma Aventura Olímpica na Terra
do Cinema, o jornalista Tiago Petrik conta a história de Adalberto e outros
episódios inusitados dos Jogos de Los Angeles, que foram também os primeiros em
que uma brasileira competiu, a nadadora Maria Lenk.
Para Petrik, a visão pessimista de Adalberto sobre a
carreira de atleta era um reflexo de seu tempo. "Como o amadorismo era
obrigatório na Olimpíada, só conseguia se dedicar ao esporte quem era militar
ou quem era de uma família rica e não precisava trabalhar".
O jornalista considera os Jogos de 1932 uma espécie de
"ilha da fantasia", com a construção da primeira vila olímpica da
história, para que atletas tivessem um local para se hospedar sem arcar com os
custos, já que o mundo ainda não tinha se recuperado da crise econômica de
1929, e muitos países mal tinham o dinheiro necessário para mandar seus
representantes a Los Angeles. "Só Los Angeles poderia sediar essa loucura
e criar esse cenário como um estúdio de Hollywood."
Nesse roteiro cinematográfico, Petrik compara Adalberto ao
protagonista do filme norte-americano Forrest Gump: O Contador de
Histórias, de 1994 "Ele [Adalberto] era o nosso Forest Gump, que
gostava de contar as histórias e correr. E suas histórias eram incríveis",
afirma o jornalista.
Pelo menos nome de rua
Assiim como a família de Adalberto, Petrik diz que o atleta
merecia mais reconhecimento. "Temos a mania de achar que só quem subiu ao
pódio é merecedor. Ele não merecia só um beco, mas um Centro de Treinamento
Adalberto Cardoso. Se alguém representou o espírito olímpico na história
olímpica brasileira, esse cara foi o Adalberto. Ele levou ao extremo essa
máxima de que o importante é participar."
Neta de Adalberto, a professora Ednete Cardoso, de 49 anos,
conta aos dois filhos as histórias que ouviu do pai sobre o Homem de Ferro.
Pela memória do avô e pela alegria do pai, ela também gostaria que Adalberto
fosse homenageado ao menos com o nome de uma rua. "Seria justo. Seria
interessante que Florianópolis reconhecesse essa questão. Para nós [família], é
uma coisa que vai passar de geração em geração. Não vamos esquecer nunca."
Ednete conta que, na época da escola, seu esporte preferido
também era a corrida, mas a vida seguiu outros rumos, e ela se formou e foi
trabalhar. Em agosto, a professora vai sintonizar a TV principalmente nas
competições de atletismo. "É lógico que a gente tem paixão pela corrida,
porque vai sempre ver e lembrar dele."
Perrengues desde o embarque
Apesar da história dramática, Adalberto não foi o único
atleta brasileiro que passou por perrengues na Olimpíada de 1932. Quando
deixaram o Rio de Janeiro para a viagem de 30 dias em direção aos Estados
Unidos, os atletas embarcaram no navio Itaquicê, que a Marinha incorporou da
Companhia Nacional de Navegação Costeira apenas para a viagem.
Além da delegação brasileira, o navio levou 55 mil sacas de
café que os atletas tiveram a incumbência de vender para custear a viagem.
"O governo cedeu 55 mil sacas, mas o café não valia mais nada. Só foi
doado porque tinha havido superprodução", relata Tiago Petrik.
Camuflado como embarcação militar para não pagar imposto no
Canal do Panamá, o navio teve o disfarce descoberto e a delegação ficou sem
dinheiro para desembarcar em Los Angeles. Apenas parte da equipe desceu na
cidade-sede dos Jogos, e os demais viajaram para São Francisco, onde havia um
comprador interessado nas sacas de café. Foi por isso que Adalberto desceu
longe do local de prova. Na corrida para Los Angeles, Adalberto foi acompanhado
pelo comandante do Itaquicê, capitão-tenente Paulo Martins Meira, que também
disputou os Jogos e se tornou presidente da Confederação Brasileira de Basquete
em 1938.
Petrik lembra ainda uma história menos honrosa da
participação brasileira em 1932: "A equipe de polo aquático deu uma surra
no árbitro, na partida entre Brasil e Alemanha. Todos os atletas do polo
aquático foram excluídos dos Jogos por causa dessa cena. o Brasil ficou
proibido de participar dessa modalidade por décadas." Agência Brasil.
Ademir, filho do atleta Adalberto Cardoso, emoldurou em um
quadro as medalhas do pai. Arquivo da família.
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O filho Ademir guarda carta em que o Homem de Ferro narra
suas dificuldades e conquistas. Arquivo da família.
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